• Home
  • Artigos
  • A nova Constituição chilena pelo olhar de um chileno

A nova Constituição chilena pelo olhar de um chileno

13 de novembro de 2020

No final do mês de outubro, o Chile viveu um momento histórico: a população decidiu, por maioria em plebiscito, que o país terá uma nova Constituição. Ela será redigida por uma Assembleia Constituinte, eleita por nova votação em abril de 2021, e que será constituída por paridade de gênero (50% mulheres e 50% homens) e por novos membros sem necessidade de filiação partidária (nenhum parlamentar em exercício irá participar). Haverá, ainda, uma cota de assentos reservados para os povos indígenas.

A participação popular é muito importante pois a Constituição atual foi redigida durante a época da ditadura do General Augusto Pinochet. Portanto, para boa parte da população chilena, ela é ilegítima, apesar de ter sofrido consideráveis modificações ao longo dos anos[1].

Para entender melhor o que esse episódio significa para os chilenos, o professor de biologia do Ensino Médio, Andrés Méndez, conta um pouco de sua experiência e de seus familiares. Ele nasceu na capital do Chile, Santiago, e tem ainda parentes no país.

Leia seu relato abaixo.

Protesto popular no Chile em outubro de 2019

“O plebiscito de 25 de outubro realizado no Chile consultou o povo chileno sobre a necessidade de redigir uma nova Constituição. A resposta foi um massivo SIM, com 78% de aprovação.

O pano de fundo para entender o contexto político do atual plebiscito é o marcante regime ditatorial que vigorou de 1973 a 1990. A ditadura chilena, liderada pelo General Augusto Pinochet, foi uma das mais repressoras e violentas da América Latina, com 3 mil mortos e/ou desaparecidos e mais de 200 mil exilados. A Constituição vigente foi redigida em 1980, em plena ditadura, o que lhe confere ilegitimidade perante a população. Essa sua origem é central na sua atual rejeição. Ela também é considerada autoritária, pois engessa reformas que acompanhem os anseios e necessidades de um mundo e uma sociedade em transformação, reflexo de uma sombra autoritária que ainda paira sobre a sociedade chilena por meio de sua Carta Magna.

Um dos pilares político-econômicos da ditadura chilena foi uma pretensa capacidade transformadora do Estado, inspirado na Escola de Chicago e seu discurso neoliberal ortodoxo, que defende um capitalismo quase sem regulação e com participação mínima do Estado. De fato, o Chile e seu regime ditatorial formaram um terreno fértil para a implementação das ideias neoliberais, sem participação popular nem contraposição de ideias. Não havia oposição nem discussão e, portanto, não havia democracia.

Voltei várias vezes ao Chile e, recentemente, há cerca de quatro anos, notei uma crescente insatisfação nas conversas familiares. Essa impressão somou-se a dois fatos que começaram a chamar minha atenção: um evidente avanço da desigualdade social, observada em Santiago e entorno, com a presença de cada vez mais moradores de rua vivendo de maneira miserável; e a insatisfação dos aposentados com os modelos privados adotados[2], consequências da política neoliberal citada anteriormente.

É interessante notar que sempre são ressaltados os ótimos índices macroeconômicos[3] e de desenvolvimento humano do Chile, e questiona-se se não haveria uma situação contraditória em relação à enorme insatisfação exibida pelos chilenos, cristalizada nos protestos e manifestações de 2019 e 2020. Entendo que esses índices não se refletiram no cotidiano das pessoas, e gradativamente criou-se uma insatisfação geral no povo chileno, fruto da crescente desigualdade social e de um modelo político-econômico excludente, com uma Constituição calcada no conceito de estado mínimo neoliberal, que permitiu ou facilitou a privatização de serviços básicos como água potável[4], seguridade social, saúde[5] e educação[6], entre outros. Tenho parentes que reclamam bastante do valor da aposentadoria, sendo que lhes foi “vendido” que a migração para um modelo privado seria melhor para todos. Definitivamente, não foi.

Esse foi o caldo para que, em outubro de 2019, começasse uma série manifestações e protestos em todo o país, que proporcionaram cenas tristes de muita violência. Veio a pandemia e não houve manifestações até outubro de 2020. Sim, novamente o povo chileno foi às ruas, e infelizmente vimos novamente cenas de violência, mostrando a polarização e a insatisfação de parte significativa dos chilenos.

Esse foi o contexto da vitória esmagadora do SIM por uma nova Assembleia Constituinte, que será responsável pela elaboração da nova Constituição chilena. Certamente, esperamos que, em abril de 2021, o povo chileno escolha representantes à altura da missão de construir uma Carta Magna que vá ao encontro dos anseios e necessidades do povo chileno, voltada para a promoção da paz, da união, da prosperidade de todos e da igualdade social!

Viva Chile!”

Para saber mais
Chile: processo político e controvérsias intelectuais


[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54689493

[2] https://economiatodos.cl/2015/08/19/el-sistema-de-afp-explicado-con-manzanitas/

[3] https://www.worldbank.org/en/country/chile/overview

[4] https://www.cepal.org/es/publicaciones/6380-codigo-aguas-chile-la-ideologia-la-realidad

[5] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/24/a-dura-realidade-da-saude-publica-no-chile-se-voce-nao-tem-dinheiro-morre.ghtml

https://www.brasileiraspelomundo.com/o-sistema-de-saude-no-chile-130683162

[6] https://istoe.com.br/156138_QUEM+FINANCIA+A+EDUCACAO+CHILENA+SAO+AS+FAMILIAS+/

Compartilhe:

WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn