Michael Luis dos Santos
Professor de História
Terça-feira, nove horas da manhã de um ano de pandemia, vou para a sala de aula e espero o 9º ano chegar. Neste “novo normal”, poucos alunos e alunas. Estoicamente preparo todo meu material e inicio com o “bom dia” de hábito. Alguns respondem, outros estão entretidos com as redes sociais. Tão logo os saúdo, já começo falar da aula do dia. Penso comigo: “Nossa, acho que não ficarão animados… o tema é pouco atrativo”. No silêncio que imperava, de repente uma aluna me faz uma pergunta. Novamente, pensei comigo: “Vai pedir para ir ao banheiro”.
Vínculo, ansiedade e aulas: professor conta como tenta se adaptar à quarentena
“Professor, você tem medo da morte?” A turma ficou agitada. Alguns saíram do transe das redes sociais e olharam com ar de espanto para a colega; outros, visivelmente irritados, pensaram: “Poxa, que pergunta tosca”. Alguns deram risadas, pois não acreditaram que a colega ousasse perguntar algo tão mórbido. Notei que a aluna olhava para mim esperando uma resposta ou que eu não tivesse uma. Rapidamente tirei meu canetão do estojo (estava com saudades de usá-lo depois de ano e meio de pandemia e aulas remotas), fui em direção à lousa e escrevi em letras grandes: “A MELHOR CONSELHEIRA SOBRE A VIDA É A MORTE”.
Havia conseguido o impossível: a sala foi ficando quieta sem eu precisar falar nada, muito menos recorrer ao tão odioso discurso de autoridade. Alguns se silenciaram ao ler a frase, outros e outras assumiram uma postura de colocar a mão no queixo e pensar. A aluna que me fez a pergunta ficou sem entender. Deixei a sala por alguns minutos incomodada e pensativa. Deveria pensar no próximo passo.
“A morte não precisa ser tratada como algo que não harmônico, ou proibido”
Perguntei: “O que vocês acham que é a morte?”. Uma enxurrada de respostas veio como um rompimento de uma barragem: “é tristeza”, “dor”, “perda”, “algo que dá medo”, “filme de terror”. Um aluno questionou: “Mas professor, como a morte pode ensinar algo se ela só causa tristeza?”. No meu íntimo, amei a provocação e resolvi também provocá-los: “Vamos fazer o seguinte exercício mental: quero que todos e todas me digam onde podemos perceber a existência de dualismos na natureza”. Alguém de pronto respondeu: “Dia e noite, professor”. Complementei: “Calor e frio, inverno e verão, doce e azedo e, por que não, vida e morte?”. Vida e morte são parte da natureza, de nossa condição de existir.
“Nossa aula de hoje será sobre um filósofo que pensou sobre a morte. Seu nome é Sêneca, nascido no ano I da era cristã e morto em 65. Ele pertenceu a uma corrente de pensamento chamado Estoicismo, um sistema ético baseado na ideia de que não devemos nos deixar perturbar por nenhum tipo de problema externo a nós ou interno.”
“Professor! Esse ‘cara’ é importante para entender a morte?” Rapidamente saquei na internet um trecho da carta que ele escreve ao seu amigo Lucílio, coloco no monitor e todos começam a ler: “Você diz, é a maior desvantagem possível ser desgastado ou morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desaparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes” (XXVI.4). Feita a leitura, as caras de dúvida ainda teimaram em insistir, ainda bem. Aos poucos alguns alunos tentaram explicar, cada qual ao seu modo, o trecho da carta no qual Sêneca fala sobre a morte.
“Por que choramos na morte?”
“Sor Micha (adoro a informalidade no tratamento)” – questionou uma aluna, a mesma que perguntou sobre a morte – “entendi que morremos aos poucos, é isso? Então por que choramos na morte?”. Mais uma vez o êxtase da dúvida. E, de pronto, fui provocando.
“Observem todos a nossa condição humana. Falei no começo da aula que vida e morte fazem parte deste teatro da vida, assim como o dia e a noite, o claro e o escuro, e elas estão em perfeita harmonia. Então a morte não precisa ser tratada como algo que não harmônico, ou proibido. Pelo contrário, devemos falar sobre ela com a mesma naturalidade que falamos sobre a vida. Mas, por que choramos? Isso está ligado à nossa civilização e ao tratamento que damos aos que morrem. Encaramos como uma perda, mas outras culturas comemoram os mortos”. “Prô!!! É a festa do dia dos mortos no México, né?”. Assenti com a cabeça e continuei.
“Vamos lá, todos e todas, agora: se eu lembro de uma pessoa querida que acabou de morrer e choro a dor, vocês concordam que a dor uma hora passa? E se a lembrança está ligada a esse sentimento, então ela passará também” (Mais uma vez a dúvida e a alegria da dúvida pairaram sobre a sala). “A morte não precisa ser encarada como o fim e a lembrança não precisa estar condicionada à dor. Vamos pegar um exemplo bastante próximo nosso: a morte da professora Bete. Claro que chorei, fiquei triste, mas a minha lembrança dela está naquilo que ela fazia de melhor. Toda vez que ouço uma música que me deixa pensativo, remeto meu pensamento a ela, ou seja, eu posso, diante de uma situação bela, lembrar-me de uma pessoa que morreu sem que eu sofra com isto”.
“Quanto à pergunta anterior, sim, morremos aos poucos, mas calma, não precisam ficar desesperados e desesperadas”. No monitor, coloquei a imagem de uma ampulheta. “Observem esta figura…”. “Ampulheta, prô”. “Sim, uma espécie de relógio antigo. Agora, imaginem vocês que, na mitologia grega, Zeus virava a ampulheta da vida de cada mortal na hora de seu nascimento. E continuem imaginando que a areia que escorre por este mecanismo pode ser a areia de nossa existência. Então, o último grão que cai não é o responsável pela sua morte. E isso Sêneca vai nos ajudar a entender: a morte como um processo natural da vida. E se é natural, por que ficamos com medo?”.
“Mas prô, então me explica, como a morte pode nos ensinar a viver?”.
Ia explicar e tão logo o sinal bateu para a troca de aula. “Rapidamente, queridos e queridas, o fim da aula não é dado só pelo sinal, mas a partir do momento que entrei na sala e iniciei nossa conversa”.
Escutei euforicamente um exclamar: “Caramba, fez sentido”.
“Prô, fica mais…” “Não vai, tá mó legal”.
“Muito bem, na próxima aula, continuaremos a falar sobre ela, a morrrrrrteeeeee!!!!”.
Riram todos e todas.